Artigo de Nathália Oliveira e Juliana Borges publicado originalmente no LeMonde Diplomatique Brasil
A repressão a usuários de drogas e o avanço da especulação demonstram um padrão recorrente: a criminalização da pobreza serve de álibi para liberar terrenos e revitalizar áreas inteiras sob comando de interesses privados
Nas últimas décadas, a cidade de São Paulo tem sido laboratório de políticas que misturam repressão policial, higienização social e interesses do mercado imobiliário. A justificativa oficial é o combate às drogas. Mas o que está em curso é a criminalização sistemática da pobreza racializada e o apagamento das formas populares de vida, memória e cultura.
A criminalização da pobreza é uma velha arma da lógica perversa que entrelaça racismo e exclusão de direitos, e desde 2015, a Iniciativa Negra por Uma Nova Política sobre Drogas tem denunciado que a chamada “guerra às drogas” é um dispositivo que reatualiza e sustenta a manutenção da opressão racial no Brasil e no mundo.
Esse cenário não é novo. A guerra às drogas tem sido usada como ferramenta para sustentar uma política racista de controle social, aprofundando desigualdades históricas. A violência estatal se manifesta nas abordagens abusivas, no encarceramento em massa, na letalidade dirigida contra a juventude negra e periférica, mas também em processos menos visíveis, como remoções forçadas, repressão à cultura de rua e especulação fundiária nos territórios populares.
A Favela do Moinho, no centro de São Paulo, é um exemplo recente dessa ofensiva. Em maio de 2025, foi alvo de uma operação policial com despejos forçados que apenas a resistência da comunidade conseguiu conter. Mas ela está longe de ser um caso isolado. A repressão a usuários de drogas na região da Luz e o avanço da especulação em áreas como a Cracolândia, Paraisópolis, Baixada Santista e o Largo do Rosário, na Penha, demonstram um padrão recorrente. A criminalização da pobreza serve de álibi para liberar terrenos e revitalizar áreas inteiras sob comando de interesses privados.
Em nossa publicação Racismo e a gestão pública das políticas de drogas na Cracolândia, analisamos dois programas voltados para a região: o De Braços Abertos, implementado pela gestão de Fernando Haddad em 2014, e o Redenção, iniciado em 2017 pela gestão João Doria/Bruno Covas. O estudo demonstra o quanto a guerras às drogas é ineficiente em seus objetivos: no período de 2017 a 2020, a Guarda Civil Metropolitana (GCM) apreendeu o equivalente a R$ 342.803,33 em drogas, ao tempo que, no mesmo período, apenas a Inspetoria Regional de Operações Especiais (Iope) recebeu verbas para compra de equipamentos no total de R$ 469.149,39. Ou seja, para cada R$ 1,00 apreendido em drogas, muito mais dinheiro é gasto, já que, ao valor dos equipamentos adquiridos deve-se somar o custo dos profissionais ocupados nas ações, todas às custas do Estado. Um enorme passivo, cujo cheque é assinado por todos os cidadãos, pois a maioria deles confiou em governantes que defendem a manutenção dessa guerra.
No último mês de abril, organizamos também o lançamento da revista PLATÔ Intersecção – Uso da Terra, Política de Drogas e Justiça Climática, publicação pioneira que reúne dezessete artigos em perspectivas diversas, demonstrando que a proibição das drogas fragiliza territórios, alimenta o crime organizado, bloqueia alternativas sustentáveis e fortalece desigualdades históricas – desde a macropolítica até a micropolítica, perpetuando um rastro de sangue no campo, na floresta e na cidade.
Por essas razões, reafirmamos que o estado de violência antinegros gerado pela proibição das drogas é apenas a ponta de um iceberg de raízes profundas: outrora, foram criminalizadas as nossas religiões, nossas expressões e nossa cultura, enquanto éramos chamados de vadios para não nos empregarem. Em nome do progresso e do desenvolvimento, grandes empreendimentos destroem patrimônios materiais e imateriais e impedem a criação da memória dos bairros e territórios, entregando a autoria e a versão oficial da história nas mãos das pequenas elites que determinam os rumos da cidade.
É por isso que a cultura, longe de ser apenas entretenimento, é também campo de disputa, tecnologia social e forma de resistência. Funk, rap, samba e tantas outras expressões das periferias brasileiras não são apenas manifestação estética: são denúncia, são sobrevivência, são organização política.
A recente criminalização do MC Poze do Rodo, alvo de perseguição e tentativa de silenciamento por meio do sistema penal, escancarou mais uma vez a seletividade do aparato repressivo. Quando uma multidão foi às ruas recebê-lo na saída do presídio do Bangu, no Rio, não se tratava apenas de apoio a um artista, mas da expressão coletiva de indignação frente à criminalização da juventude preta e favelada. Essa mobilização abriu janelas de oportunidade política. Foi mais que um gesto simbólico porque revelou uma potência real de alargamento do projeto abolicionista penal com base na força organizada dos territórios e nas vozes que deles emergem.
A cultura é também um modo de fazer política, de manter viva a memória e projetar futuros. Buscando entender como nossos ancestrais resistiram a cenários de criminalização anteriores, disputando cada esquina das ruas que nós frequentamos, lançamos em 2024 o projeto multidisciplinar Cartografias de Bambas, que documenta a história e a memória a partir das vivências e perspectivas de bambas na Barra Funda, também conhecida como berço do samba paulista.
E agora, no próximo dia 12 de junho, realizaremos o lançamento de um minidocumentário com as dez primeiras histórias de vida, mapeadas como parte do projeto, além de um livro inédito sobre a comunidade da Barra Funda. Para nós, celebrar essas narrativas, e através delas recontar a história e a cultura, é um mecanismo de empoderamento para que pessoas e territórios da cidade possam disputar os rumos dos seus futuros.
Essas ações reafirmam nossa crença de que a construção de comunidades fortes é a melhor resposta que podemos oferecer à ofensiva do capital. Ao recontar nossas narrativas a partir do olhar dos que são sempre excluídos – embora sejam o contingente populacional e cultural majoritário deste país –, fazemos um movimento muito poderoso: revelar a história e nos recolocar em um posicionamento crítico de cobrança por direitos e reparações históricas. A memória dos sambistas que sucumbiram, dos que resistiram e dos que ainda seguem vivos frente a esse contexto de opressão é nossa arma política. Porque um sambista de rua não morre sem glória. Quando um morre sem reconhecimento, toda uma comunidade desaparece com ele.
Reconhecendo a cultura como tecnologia social de transformação e resistência, a Iniciativa Negra tem assumido a tarefa de narrar a vida – não a morte – e impedir que nossas peles e territórios continuem sendo alvo sistêmico da estigmatização, da criminalização e do apagamento. Da Barra Funda ao Largo do Rosário na Penha, da Baixada Santista a Paraisópolis, nosso compromisso é com as vozes silenciadas, os territórios ameaçados, os jovens que são alvos preferenciais da letalidade policial e do encarceramento, e que vivem nos mesmos bairros onde o racismo consagra interesses especulativos e lucrativos do capital.
Nesse processo, reconhecemos que cada comunidade que resiste a remoções, despejos, ao silenciamento está também reivindicando seu direito à cidade, à memória, ao futuro. Celebrar o funk das vielas, o samba das rodas de rua, o rap das batalhas e dos palcos improvisados é uma forma de insurgência, uma estética que também é ética e política. Do Moinho à Baixada, da Cracolândia à Penha, seguimos comprometidos com a construção de comunidades fortes. Porque são essas comunidades que resistem, que recontam suas próprias histórias, que geram suas próprias tecnologias de cuidado, que afirmam a vida em meio ao projeto de morte. Defender seus corpos e suas culturas é também defender uma cidade mais justa, onde não haja espaço para que a maldade dos ricos se imponha como política pública sobre os pobres. Seguiremos defendendo os corpos e as culturas que insistem em viver, porque somos muitos, somos memória e estamos vivos para impulsionar “a grande roda da história”.
Nathália Oliveira é socióloga e pesquisadora, e desde 2012 lidera diversas estratégias de advocacy a partir do fortalecimento de redes territoriais e culturais. Em 2015, ao lado de Dudu Ribeiro, fundou a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, mobilizando ações coletivas voltadas para políticas de drogas, justiça racial e participação social, contribuindo com estratégias de incidência política, formação de redes e produção de conhecimento voltadas ao enfrentamento do racismo estrutural. Foi redutora de danos, educadora e coordenadora no Centro de Convivência É de Lei, além de integrar o ITTC. Já presidiu o Conselho Municipal de Políticas Públicas de Drogas e Álcool (COMUDA) [2017-2019], integrou a secretaria executiva da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (2017-2024) e é conselheira do Conselho Nacional de Drogas (2023-2025), além de conselheira ad hoc da Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH). Também é autora e coautora de pesquisas e publicações sobre os temas.
Juliana Borges é escritora e ativista abolicionista penal. Coordenadora de advocacy da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas e fundadora e diretora de Programas e Incidência Política do Kuíra Feminista Instituto. É conselheira da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, do Conselho Nacional de Álcool e Outras Drogas, consultora ad hoc da comissão de segurança pública e direitos humanos do Conselho Nacional de Direitos Humanos e da comissão de segurança pública da OAB-SP. Foi secretária-adjunta de Políticas para as Mulheres e assessora especial da Secretaria do Governo Municipal da Prefeitura de São Paulo (2013-2016). Estudou Letras (USP) e estuda Segurança Pública (Anhembi-Morumbi). É colunista da revista Quatro Cinco Um e autora dos livros Encarceramento em massa (2019) e Prisões: espelhos de nós (Todavia/2020).